O Abominável Dr. Phibes (alerta de spoilers!)

Questione Tudo
3 min readAug 15, 2022

Nessa magnífica obra de humor negro de 1971, mesmo ano de Laranja Mecânica, com o qual guarda semelhanças, vemos retratada a vida do brilhante Dr. Phibes, cientista, teólogo e organista, que, completamente devastado pela morte de sua esposa, destruído, perde completamente a razão, rompendo o elo com a humanidade e retirando-se em isolamento, passando a dedicar seu tempo a tramar planos de vingança aos médicos a quem atribui a responsabilidade da morte de sua amada.

A parte do caráter cômico, tipicamente britânico, o filme é notável ainda pela beleza e caráter artístico das cenas mostradas, assim como a força poética e trágica expressa na figura do “abominável” Dr. Phibes. Nesse sentido, a semelhança da obra Frankestein, de Mary Shelley, que sem dúvida serviu de inspiração, o filme é notável ao ilustrar um vilão tão miserável, e mesmo digno de pena.Podemos, assim, pensar no filme como a personificação artística da depressão. A abertura do filme sendo ela mesma o melhor exemplo, constituindo uma espécie de paródia de uma cerimônia de casamento: no lugar da noiva, de branco, temos Dr Phibes, completamente de preto, tocando, em órgão, o que lembra uma versão macabra da famosa abertura tocada no matrimônio, num local repleto de árvores completamente sem folhas (mortas), com uma “orquestra de autômatos” (representando sua solidão) e onde nenhuma luz jamais irá entrar.

Há algo, portanto, muito diferente disso e do típico filme de terror: o que aterroriza, nesse filme, não é o risco eminente de morrer ou ser mutilado: o terror é causado ao se olhar para pessoas que JÁ estão mortas/mutiladas e que, apesar disso, “seguem” a vida.

Dr. Phibes pode ser pensado como uma figura autenticamente “satânica”, que se “rebela” contra Deus, que lhe tirou a esposa, criando ele mesmo um universo próprio que imita aqueles de Deus, a semelhança do conceito de demiurgo comum na idade média, que o mundo seria obra de um “falso deus”. Tratando-se, sem dúvida, de um gênio, Dr Phibes é hábil para transformar sua própria dor em arte.

Ao olharmos para Dr. Phibes, temos a sensação de olharmos para um abismo, ou um paciente terminal de câncer. Alguém além de nossa ajuda, e sem qualquer esperança de recuperação, cuja condição não pode levar senão a coisas terríveis e monstruosidades.Cada morte que trama, com extrema meticulosidade, revelam assim, mais que uma vingança, como que um poema, uma “celebração”, para representar a dor sentida pela morte de sua esposa.Sem dúvida, uma inspiração do romantismo, com seus doutores-faustos e mefistófoles refinados: com a destruição dos antigos valores, e a religião sendo associada a ignorância e o período das trevas, a lacuna criada pelo iluminismo passa a ser preenchida, no romantismo, pela idealização da “amada”, que preenche o papel de Deus. Dr Phibes, de fato, cria um verdadeiro “altar” em homenagem a sua esposa morta, com quem “conversa”, como que numa reza. E o final do filme se dá nada menos com o Dr. usando um dispositivo de sua própria invenção, removendo seu sangue por um fluído balsâmico, que o conservaria por toda eternidade ao lado, num caixão comum, de sua esposa, também embalsamada.

Sem dúvida, Alan Moore, e depois as Irmãs Wachowsky, certamente se inspiraram nesse filme ao conceberem V, de V de Vingança.Para não falar de todo o universo criado por Tim Burton, em especial Edward Mãos de Tesouro, que se foca justamente na representação da estética do macabro. É um filme que certamente guardarei na memória pela sempre, por ser capaz de, no lugar de servir como um simples entretenimento ou emoções baratas de adrenalina, típicas de filmes de terror, apresentar algo com tamanho peso cultural.

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